sexta-feira, junho 05, 2020

WrestleMania & BolaMania

Há já muitos (muitos!) anos que a WWE descobriu que a melhor forma de atrair audiências para os pseudocombates de luta que organizava era criar storylines (narrativas) de pseudorivalidades entre os vários lutadores (muitos deles, maiores rivais no ringue e melhores amigos na vida real). «Eu vou desfazer-te no ringue porque tu andas a dizer isto e aquilo sobre mim!...» é mais ou menos a base das intrigas criadas em torno desse pseudodesporto, fisicamente uma das práticas físicas mais exigentes do mundo, desportivamente uma das menos verdadeiras do planeta. O sucesso dessa estratégia é tal que o ponto mais alto de cada temporada, a "WrestleMania" é um êxito de audiências retumbante, ano após ano.

Dito isto...

Quem estiver surpreendido pelo que se passou no regresso do futebol em Portugal que levante o braço!

Ninguém?!... Sério?...

[Interlúdio]
Por acaso, não acredito - mesmo - que não haja uma alma ingénua algures neste país que neste momento coce a cabeça em estupefação e pense naquela frase muito batida por repórteres que noticiam homicídios de violência ocorridos após vários anos de muito sabidas discussões e agressões entre os elementos da família em causa: «Nada fazia prever que...»; há sempre alguém que é como que apanhado na curva pelo óbvio. A ignorância é porreira enquanto dura, porque dá jeito, que mais não seja, para se ser feliz por mais uns minutinhos antes de a realidade dar conta de si. Por exemplo, eu próprio perco alguma jovialidade sempre que chega uma conta, de que não estava à espera, para pagar.
[Fim de interlúdio]

Para mim, era óbvio que o campeonato (com apenas um ponto de diferença entre FC Porto e SL Benfica aquando da paragem forçada) "teria" de regressar, mas também era óbvio que nada de fundamental (tirando a previsível ausência de público nas bancadas) iria mudar.

Num futebol de consumo interno assente em bases "WrestlingMania'nas", a storyline da intriga e da rivalidade visceral teria de vir à superfície. A verdade é que - como o azeite está para a água - também o "azeite" da bola vem sempre ao de cima. Sempre.

Ainda antes de tudo voltar à "normalidade", já o normal vinha acontecendo. Aos primeiros laivos (rumores, vá) de desconfinamento, já adeptos rivais andavam em "(re)encontros de convivência"que terminaram em hospitalizações e afins.

Ainda antes do campeonato regressar, já uma claque anunciava que, não podendo estar nas bancadas do estádio onde a equipa jogaria o primeiro encontro desta fase final da liga, iria para o exterior do complexo desportivo mostrar o apoio. (De pedir conselhos à DGS sobre essa ação até que as coisas corram exatamente "como previsto" com adeptos de futebol - diz a minha experiência de ais de uma década a lidar com o futebol português - vai um universo inteiro de distância.)

Ainda antes de a bola voltar a rolar, quem falou do regresso do "futebol de 1ª" português foi... (praticamente) toda a gente; menos quem joga futebol. Quando os jornais desportivos conseguiram voltar a dar notícias da liga, os jogadores - confinados pela Covid e amordaçados pelas estruturas diretivas que lhes pagam os salários - praticamente não aparecerem nas 1ªs páginas. E mais se falou de polémicas diretivas do que de expectativas desportivas para a ponta final da época.

Mal a bola voltou a rolar, voltaram também as críticas à arbitragem, os penáltis-que-deviam-ter-sido-marcados-e-não-foram, o nós(-em-campo)-contra-tudo-e-contra-todos(-fora-de-campo), as boçalidades que se escrevem nas redes sociais (e as que se dizem na televisão não tardarão a subir de tom) e, claro, as pedradas (que neste caso foram a um autocarro, mas que dantes foram... a outros autocarros; e a viaturas ligeiras; e a casas particulares; e a sedes locais de casas de clubes; e a locais de trabalho de árbitros...) e também as palavras ameaçadoras pintadas em casas, gritadas à beira de estradas, regurgitadas na internet.

Desde os anos 90  - mais ou menos, a mesma altura em que a WWE tomou a sua decisão de como promover o seu espetáculo/produto - que o futebol português de consumo interno (estou deliberadamente a deixar a Seleção fora disto - ainda que, recentemente, a clubite tenha por ali passado "de raspão" com um alegado apoio à "Equipa das Quinas" prestado por claques de clubes - e isso - surpresa! - não correu exatamente "como previsto") assumiu a postura de que a intriga, a polémica e a rivalidade visceral (e, acrescento, violenta) era o caminho de promover o seu espetáculo/produto.

OK. Era uma caminho possível.

A questão é que, sendo a mesma técnica utilizada pelo Wrestling profissional, o universo não é o mesmo, nem a realidade é a mesma. Porque a realidade nem conta no Wrestling. É tudo ficção. Inclusivamente a pancadaria. No futebol português não. Custe ou não a acreditar nisso, o futebol de bola na relva joga-se no mundo real, com causas e efeitos igualmente reais (e a pancadaria também é dura e penosamente real - por vezes, até mortalmente real). A parte do faz-de-conta surge só na cabeça daqueles que fazem de conta que está tudo bem, que tudo isto faz parte da coisa, que o futebol é bom é com este grau de emoção... e que é tão importante na vida das pessoas que a temporada tinha MESMO de ser completada, quando mais nenhum dos outros campeonatos da mesmíssima modalidade - inclusivamente, um outro campeonato profissional - viu a época ir até ao fim.






quinta-feira, março 12, 2020

Covid-19? Bom senso e canja de galinha*


2 x 500g de massa
2 latas de ervilhas
2 latas de feijão
6 latas de atum
6 litros de leite
3 pacotes de polpa de tomate
1 caixa de almôndegas
1 queijo
2 pães de forma
1 x 4 rolos de papel de cozinha
1 x 12 rolos de papel higiénico

Foi este o meu avio de supermercado de hoje. Em quase nada diferente do avio de um outro dia qualquer. Com base no que já havia em casa, trouxe o que poderia faltar nos próximos dias; que - espante-se! - é o que fazemos cá em casa em qualquer outra altura.

Há dias (nos finais de fevereiro), numa consulta de rotina com a pneumologista para avaliar a evolução da minha recém-contraída asma, deixei para o fim uma pergunta sobre o que já se vinha falando desde o início de janeiro: quais as precauções (se algumas) deveria ter - sendo asmático (e, por isso, entrando nos grupos de risco) - em relação ao Covid-19, para proteger-me e proteger quem contacta comigo? A médica, com base no meu tipo de asma (crónica, mas não grave) e sendo eu um indivíduo saudável de uma forma geral, disse-me que só teria de ter as precauções básicas, como grande parte da população.

Isso bastou-me para colocar como “fasquia” para mim mesmo as indicações dadas por que quem sabe do assunto. A mim e ao resto da população. Segui a minha vida e ainda hoje sigo a minha vida, tão normalmente quanto me seja possível, dadas as indicações se quem sabe do assunto para que nos mantenhamos cautelosos e menos socialmente ativos de momento. Vou onde tenho de ir, faço em casa todo o trabalho que seja possível fazer em casa, compro apenas aquilo que preciso de comprar.

Não me parece um plano complicado de cumprir.
E não acho que sou um exemplo para ninguém.
Simplesmente, estou a fazer aquilo que o (meu) bom senso manda.

Caso tenha sintomas que me levem a crer que possa ter de ser avaliado, pois que farei o que as autoridades me indicarem. O bom sendo - o meu, volto a sublinhar - também já me disse para proceder assim, adaptando o meu comportamento a uma nova circunstância, se algo do género acontecer.

E se as escolas fecharem e a minha filha tiver de ficar em casa, pois que a vida se adaptará também a esse detalhe. Estarmos prontos para adotar medidas excecionais em tempos excecionais faz parte. Ou, no mínimo, devia fazer.   

Percebo que os cenários apocalípticos que as histórias dos livros e dos filmes acerca de vírus nos fazem temer mexam connosco. Confesso que ontem até mexeram comigo. Fui à Staples comprar material para o escritório e dei comigo a olhar para os outros clientes da loja (que até estava pouco frequentada), a tentar ver se percebia neles alguns sinais de “doença”. Ao regressar ao carro apercebi-me de que o receio também é de certa forma uma maleita e decidi combatê-lo com os melhores remédios que me ocorreram naquele momento: auto-rádio e bom senso.


Virus that causes COVID-19


Estarmos bem informados é essencial, sermos cautelosos também, tal como é essencial - parece-me - pensarmos nisto como um possível tsunami que sabemos que pode vir e bater forte, mas que temos tempo de evitar, colocando-nos a todos em local seguro, ajudando quem precisa a chegar a esse lugar seguro.

Seria bom não sermos como aquelas pessoas que em dias de grandes incêndios vão “ver o fogo” e atrapalham quem luta para os apagar, ou quem sabe que é perigoso ir para junto da costa em dias de grande temporal e sai de casa precisamente para ir tirar fotos nos paredões e nos molhes, “abraçados” pelos enormes salpicos ondulação que bate nas rochas ali a meia dúzia de metros (se tanto). Tem-se visto muito desse tipo de comportamento por estes dias em que nos foi dito que o melhor é ter cuidado e evitar correr para o problema.

Mais uma vez, não acho que eu seja um exemplo para ninguém.
Mas o meu bom senso diz-me que estamos longe daquela cena estranha que se vê no filme “Twelve Monkeys” - precisamente sobre um vírus que mas boa parte da população mundial - em que os animais do zoo correm livremente pelas ruas da cidade. 





Decidi, portanto, adotar os procedimentos que as autoridades recomendam (e vierem a recomendar) e ainda outros mais que o bom senso me diga para juntar aos primeiros.

Mas… vá. Também não sou fundamentalista neste aspeto. Se, por mero acaso, me aperceber que andam girafas, cangurus ou um par de rinocerontes a passear por aí… poderei, eventualmente, rever a letra miudinha dos “termos e condições” do meu bom senso e chegar à conclusão de que não é lá grande coisa.

= = =

* Sim, eu sei que não mencionei a canja de galinha. Entenda, a canja ajudava a criar um título minimamente decente. E, de facto, até é um prato fácil de fazer e que se faz com pouca coisa, em caso de escassez de produtos no supermercado. Ah... e, como diz a expressão, não faz mal a ninguém. Embora - e bem - os médicos nos lembrem frequentemente que "canja não é sopa!" ("Sopa é com legumes. Ponto.")

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

Marega, Dinis, Fábio, Sérgio…



A saída de campo de Moussa Marega, jogador do FC Porto, este domingo (16/02/2020) no Vitória de Guimarães-FC Porto causou um tremor de terra no futebol português. Parece-me inteiramente justo que cause. O racismo no futebol é tão grave quanto o racismo no resto da vida e merece ser enfrentado de caras, discutido seriamente, evitado a todo o custo.

No entanto, nunca nada é tão simples quanto isto de se ver as coisas tal como elas são, ou como devem ser. Há sempre o outro lado da moeda. Logo nos momentos após a saída intempestiva de Marega do relvado no Estádio D. Afonso Henriques, vieram coisas diferentes daquelas que terão vindo das bancadas, mas tão perigosas quanto essas. Assim, de repente, li de imediato que o jogador tinha sido «fraco por não aguentar a pressão», por exemplo. Ou seja, insultos (racistas) = pressão? Essa equação parece-me problemática. Desde quando é que um adepto de futebol vai para um estádio mais para pressionar os jogadores adversários que para apoiar a sua equipa? Em Portugal, há já umas quantas décadas. Direi que ali nos anos 90 a coisa descambou. Mas já lá vamos.

No dia anterior ao grito de revolta de Marega, Dinis, um miúdo dos benjamins de futsal do Sporting viu um cartão branco (símbolo de 'fair play') por ter chamado a atenção do árbitro de que o adversário, no 'derby' com o Benfica, não tinha jogado a bola com a mão mas sim com a cara, o que significava que o Sporting não beneficiaria de uma grande penalidade. O vídeo retirado da emissão da Sporting TV foi partilhado de forma viral nas redes sociais e parece-me inteiramente justo que fosse. No entanto, lá pelo meio dos comentários positivos acerca da atitude do pequeno Dinis, li logo um outro que chamava de faccioso o narrador do jogo do canal que transmitia, porque em direto e no momento do lance disse que era lance para penalidade a favor do clube que dá nome ao canal. O lance foi tão rápido e tão imperceptível que o próprio árbitro, ali a poucos metros, também assinalou a penalidade, mas o narrador do jogo (que ou está num topo da bancada, ou a ver por um pequeno monitor) é faccioso por ter visto o que toda a gente pensou ver e que só o Dinis (e o adversário em lágrimas pela bolada na cara e pela injustiça da primeira decisão do árbitro) viram. A ação de Dinis só tem valor porque aconteceu e porque colocou justiça naquele momento. Mas só foi vista porque um canal de televisão (que acontece ser do clube do jogador Dinis) o transmitiu. E teve relevância porque o miúdo do Sporting clarificou o que nem o árbitro viu de imediato (tal como o narrador do jogo), ainda para mais num jogo contra o rival Benfica. Quantos o fariam e como seria a reação geral dos adeptos se um jogador da equipa sénior de futsal ou futebol de 11 fizesse isto num 'derby'? Não vale a pena responder. Você sabe a resposta. Eu também.

Uns dias antes do gesto de 'fair play' de Dinis, Fábio Martins, jogador do Famalicão, disse ter considerado que a sua equipa tinha sido superior ao Benfica na meia-final da Taça de Portugal. O Benfica apurou-se para a final, o Famalicão ficou pelo caminho, Fábio Martins deu a sua opinião (supostamente livre e a que tem direito) e foi vilipendiado por adeptos adversários nas redes sociais. E foi nas redes sociais que o jogador desabafou logo de seguida: «Somos homens que, depois de dar o litro no relvado, vamos para casa e não podemos ligar uma televisão, temos de afastar os computadores dos nossos filhos, para que eles não fiquem a pensar que o Pai matou alguém. Porque é isso que parece que transmitem, com as mensagens que escrevem.» Presumo que os adeptos contrários tenham pensado que Fábio também foi fraco e “não aguentou a pressão”, ao escrever um texto ponderado, com uma reflexão séria sobre o futebol português, do ponto de vista do atleta. Já agora, até nesse post, foi lembrada por adeptos do Benfica uma declaração (uma piadola que podia não ser excelente, mas não era insultuosa - a não ser aos olhos de adeptos como os que referi no final do parágrafo sobre Marega) de há dois anos, quando Fábio Martins jogava no SC Braga. 

No mesmo jogo, curiosamente, o árbitro assistente Sérgio Jesus cerrou o punho de felicidade por o VAR ter dado como boa a decisão que ele próprio tinha tido em campo, no lance que acabou por validar um golo ao Famalicão. Acontece que a câmara da transmissão (RTP) estava a filmar o árbitro assistente no momento em que a decisão do VAR é conhecida. O gesto de festejo foi, obviamente, partilhado de forma viral com a narrativa de que Sérgio estaria a festejar o golo do Famalicão contra o Benfica (o subsequente chorrilho de insultos - e não só - é fácil de adivinhar). A vida de um árbitro - principal, assistente ou mesmo no VAR - é de tal forma complicada que qualquer pequena vitória (leia-se decisão que não dê aso a horas, dias, semanas, meses e por vezes até anos de discussão) é merecedora de um festejo de alívio. E esse, no ponto de vista dos adeptos, é merecedor de escárnio e insultos.

E isto... foi só em uma semana.

O futebol português é isto. Há muitos anos. Falo do que sei; fui jornalista de desporto dez anos consecutivos (99% do que se faz no jornalismo desportivo em Portugal é futebol) - tempo suficiente para ver de tudo: o bom ocasionalmente, o mediano semanalmente, o mau vezes sem conta e o péssimo em barda. Acho particularmente curiosa a hipocrisia vigente há décadas em torno do futebol português, que até forma grandes jogadores, mas tem um campeonato mediano e é promovido com uma narrativa que vive de quase tudo o que lhe é lateral e quase nada do que é um jogo bem jogado ou um golo tão bem marcado que poderia ser aplaudido pelos adeptos das duas equipas no estádio. (Ainda trabalho ocasionalmente com futebol, mas foi por opção que deixei a lide diária; não havia nada que me motivasse a continuar.)

Nas televisões onde este domingo se condenaram os insultos a Marega promovem-se os insultos em programas “da especialidade” todas as semanas (os momentos “quentes” são até os mais promovidos durante o resto da semana). Nos jornais em que se elogiou o gesto do pequeno Dinis no 'derby' de benjamins em futsal utilizam-se (sempre) expressões como duelo, batalha, luta, guerra, confronto (a mesma palavra que se usa para debates, mas também para atos de violência) para dizer simplesmente jogo, escreve-se conquista para vitória, descreve-se como quente, escaldante, tórrido o ambiente de um estádio (ou só a permanente troca de “galhardetes” verbais entre dirigentes e treinadores adversários). A rádio, de uma forma geral, vai sendo o mais imune dos meios de comunicação a estes fenómenos; não totalmente, mas bastante menos divisiva.

No “mundo real” do futebol português - onde ele acontece - há agressões costumeiras entre adeptos de claques, mas também a árbitros, a dirigentes, a jornalistas, a adeptos “anónimos” apanhados em confusões alheias junto a estádios e até dentro deles. Uma academia foi invadida por adeptos. Casos de polícia e tribunal com dirigentes e outros entes relacionados com futebol grassam por aí. Tudo gente de bem, que tem a seu cargo não só as equipas profissionais de futebol (atempada e comodamente colocadas em SAD’s com os menos nomes dos clubes, mas na prática independentes deles - para que o negócio pudesse ser maior… perdão… mais transparente), como centenas de atletas amadores, em várias modalidades (sempre atiradas para o “cesto” das “Modalidades” - como se não tivessem identidade própria, nem grande valor só por si), e acima de tudo em escalões de formação. Jovens e crianças para quem a “formação” passa por ter os exemplos dos mais velhos. E o que, logo de pequenino, se aprende dos mais velhos (até dos pais que vão ver os treinos e jogos, quanto mais dos representantes adultos das equipas seniores) é que o jogo tem de ser para ganhar e que a melhor maneira de ganhar uma bola (ou um lugar no 11 inicial) pode não ser jogando melhor, mas sim ceifando um jogador de forma mais eficaz. Do que se diz/escreve nas fossas sépticas online nem falo - até porque, obviamente, ao escrever este texto posso ser acusado de contribuir com um pouco mais de matéria para o esgoto, mesmo que a intenção seja exatamente a contrária.

Ali mais acima escrevi que tenho ideia de que tudo descambou nos anos 90. Não tenho a certeza se foi aí, mas é aí que eu me lembro de ter percebido a mudança de comportamentos. As claques começaram a ser mais visíveis ao mesmo tempo que foram diminuindo os cachecóis presos nas janelas dos carros que eu ia ver passar no cruzamento de entrada na Estrada Nacional 1 em Condeixa. Carros que iam a caminho de Lisboa ou do Porto em dias de clássicos envolvendo Benfica, Porto ou Sporting, quando a A1 ainda não estava terminada - daí a necessidade de tantos carros com adeptos passarem por ali. As pessoas viajavam pelo país, orgulhosamente com o cachecol preso pelo vidro a adejar ao vento do lado de fora do carro; seguiam felizes, via-se, e os adeptos com cachecóis semelhantes apitavam em festa, até adeptos rivais apitavam de forma festiva. Nos anos 90 comecei a saber de carros apedrejados no caminho, consoante o cachecol que ostentavam. Nos anos 90 soube da morte de um adepto nas bancadas do Estádio Nacional num “derby” na Final da Taça de Portugal. Nos anos 90 soube de outros dois adeptos que morreram com a queda de um varandim quando uma claque quis insultar a equipa adversária à chegada de um clássico. As coisas terão começado antes, claro, mas foi aqui que para mim o futebol começou a tornar-se nisto que é hoje. (E, não. Não me esqueço que ao início dos anos 90 Portugal já era visto como um expoente máximo do futebol do futuro (com os dois títulos mundiais de sub-20. Como hoje é Campeão da Europa e não há muitos anos foi semi-finalista num mundial.) 

Espero (muito) estar errado, mas sinceramente não vejo este episódio com Marega fazer grande mossa no status quo do futebol português. Digo isto porque aqui e ali episódios traumáticos vaticinaram um toque a reunir, uma reflexão profunda e melhorias no ar que se respira dentro e fora dos estádios. A morte de Fehér, por exemplo. Pouco tempo depois do simbolismo de um velório em que todos se uniram por igual na dor, voltou tudo ao normal. E este é só um exemplo.

Repito, espero estar errado, porque há mais do que isto no futebol (e no desporto) português - com tanta alegria ainda para dar a tanta gente. Mas, tendo (semanalmente e todos os anos) semanas tão cheias de “nada de bom” como a semana que passou, nem o futebol português parece querer ser melhor, nem os consumidores do futebol português (que sistematicamente pactuam com o que veem e ouvem, opinando em conformidade) parecem querer ter algo melhor.

Antes que me seja apontada aquela velha questão de “criticas muito e não dás soluções”, digo que - caso isso tenha passado despercebido - já apontei para a solução que proponho.

É preciso que tanto o futebol português queira ser melhor (e não me cabe a mim dizer a quem faz o futebol aquilo que sabe exatamente que tem de fazer), como é preciso que o consumidor do futebol português queira ter algo melhor, mesmo que algo melhor seja outra coisa qualquer que não o futebol (tal como está).

quinta-feira, setembro 15, 2016

Eu, blogger.

    Por vezes, uma chamada de atenção é só mesmo isso, uma chamada de atenção. Outras vezes, algo que não é uma chamada de atenção torna-se nisso mesmo, numa chamada de atenção.

    Podia ter colocado esta questão de forma mais eloquente, acredito, mas a verdade é que - talvez por estar "perro" e destreinado - a escrita hoje não flui como noutros dias, tal como não flui agora como noutras alturas. Acontece, acho. Um dia destes melhora, creio.

    Na verdade, o que queria dizer ali em cima era que hoje fui fazer reportagem acerca do concurso Blogs do Ano, da Media Capital, e que esse trabalho - que era só um trabalho e não uma chamada de atenção - me alertou para o facto de que me tenho esquecido de lembrar de ser o que sou* há muitos anos (desde 2004 - 15/11/2004): um blogger. E que gosto de o ser.



    Na verdade, os bloggers que entrevistei para a reportagem da TVI - leia-se, personalidades dos media, da publicidade, do espetáculo e várias outras áreas, convidados a escolher os blogs finalistas do concurso -, tal como eu, já não dedilham nos seus blogs há uns tempos. Digamos, ... anos. E isso - de forma puramente egoísta - faz-me sentir um pouco menos mal com o facto de não andar por "cá" desde março passado. desde março passado.

    Mas o facto é que já não "blogo" desde março e não gosto de não "blogar".
    Mesmo que seja desde março.

    Já experimentei uma data de coisas numa data de blogs. Gostei de uma data delas e detestei uma data deles. Mas adorei experimentar tudo, com data no topo dos posts, com data no fundo dos posts e mesmo em posts sem data sequer.

   Hoje, então, dei comigo a recordar-me, acima de tudo, do inSenso Comum e do Petit Riens, por onde comecei. E acabei a lembrar-me do Pai, dá notícias!...  e, claro,  deste Nunca hei de ter um Blog, por onde ainda ando (para além do blog "interno" do site marcoantonio.pt - onde "blogo" sobre assuntos que se relacionem com a minha vida profissional).

    Tenho saudades do inSenso e do Petit Riens, mas foram blogs de que EU precisava naquele momento. E esse momento passou. Orgulho-me desses blogs mas não tenciono voltar a eles.

    Agora, talvez precise de voltar aos meus mais recentes blogs, porque sentir-me "perro" e destreinado não é para mim, nunca foi. 

    Mas, acima de tudo, acho que devo voltar por um motivo muito simples.
    Eu sou blogger. 





* [isto é a escrita a fluir de modo a parecer que não flui - propositadamente -; o que significa que talvez já vá fluindo um pouco melhor]

quarta-feira, março 23, 2016

A minha (inquantificável) verdadeira ambição: ser o melhor pai possível

    As empresas, nas avaliações periódicas de desempenho dos seus funcionários, têm sempre uma alínea em que atribuem um valor (sim, quantitativo - de 1 a 5, de 1 a 10, ou entre 'x' e 'y' - os algarismos podem variar) àquilo que denominam a "ambição" do trabalhador.
    Na verdade, o que quase sempre consideram "ambição" é a disponibilidade do funcionário para fazer mais horas que aquelas que o contrato estipula. Isso, alegadamente, (e sei-o porque já mo foi dito muitas vezes) mostra quanto o trabalhador ambiciona "subir na carreira".
    Confesso que embarquei nessa ideia de que seria melhor naquilo que faço/fazia se o fizesse em GRANDE quantidade. Talvez tenha aparentado que fiz o meu melhor quando trabalhei que nem um louco - sempre pelo mesmo salário e nunca, já agora, sem qualquer "subida na carreira" ou promoção efectiva. Mas fui considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar".
    Este desempenho alegadamente "ambicioso" da minha parte coincidiu com o nascimento de um canal de televisão da minha empresa e, esse nascimento coincidiu com o nascimento (meses depois) da minha filha, que praticamente não vi deitar durante os três primeiros anos da vida, porque chegava sempre a casa para lá das 22:00 (muitas vezes, mais tarde – muitas vezes até já de madrugada; muitas vezes depois de ter entrado ao serviço às primeiras horas da manhã).
    Percebendo que algo estava errado na minha alegada "ambição", pedi para mudar de horários e chegou a ser-me dito, por um dos mais altos responsáveis do meu departamento na empresa, que, se era por causa da minha filha, ela cresceria bem mesmo que eu não estivesse lá para a deitar todas as noites (ipsis verbis). Se tinha a intenção de mudar de vida, a partir dali tive a certeza. E mudei. Deixei, naturalmente, de ser considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar" e, muito menos, “ambicioso”.
    As empresas – falo assim, no abstracto, porque há pessoas dentro das empresas que não pensam necessariamente pela bitola das instituições para as quais trabalham – consideram sistematicamente que, por exemplo, fazer muitos turnos nocturnos ou estar disponível para alternar de turnos sempre que convém à empresa é sinal de “ambição”, quando, na verdade, é apenas sinal de que as pessoas estão em péssima posição (financeira, sobretudo) para dizer que não – ou seja, correndo o risco de se tornarem “dispensáveis” à primeira “restruturação” (que quase sempre significa despedimento de funcionários). Mais, as empresas confundem horas e horários de trabalho com produtividade. Quanto ao primeiro caso, tenho a dizer que em todos os sítios onde trabalhei sempre conheci pessoas que lá estavam as mesmas horas que eu (e até mais horas do que eu - quando fiz part-time) e produziam menos. No segundo caso, as empresas nem percebem que há funcionários que simplesmente não têm o mesmo rendimento em todos os turnos... só porque são humanos (o ser humano, por regra, não tem a mesma acuidade mental 24 horas por dia), e que ao insistir colocar determinado funcionário num horário em que não se sente bem, e em que, por consequência, não produz tanto ou tão bem, se estão a prejudicar a si mesmas. Sim, as empresas prejudicam-se mais a si ao insistir neste erro. Mas insistem. Por vezes, sistematicamente, até que o funcionário mete "baixa", se demite ou é demitido (porque se tornou "dispensável").
    Mas, pronto. Eu decidi como decidi e, fiquei algo surpreendido quando boa parte das pessoas que estranharam (e até criticaram) a minha opção na altura, curiosamente, mudou de atitude na sua própria vida profissional com o nascimento dos seus filhos. Acho isso extremamente positivo – tirando a parte em que podiam, antes disso, ter guardado as pedras nos bolsos sem as atirar, porque telhados de vidro, um dia, todos temos. Não consegui “subir na carreira” – que estagnou – mas sou hoje um pai extremamente mais feliz por ter garantido maior controlo do ‘ratio’ trabalhador-pai.



    Ouvi o treinador Quinito – a sofrer de uma profunda depressão após a morte em 2009 do filho de 30 anos, que diz não ter conhecido por trabalhar demasiado toda a vida – e confesso que suspirei de alívio. Por uma só razão. Por não ter aquela amargura na minha voz. Se sofri de depressão já depois de ter pedido e feito mudança nos meus horários? Sim. Porque percebi, como já disse, que a carreira estagnou e não conseguia entender por que razão teria de ser alegadamente "melhor profissional" apenas estando disponível para fazer vários turnos diferentes na empresa. Melhorei dessa condição com terapia, mas o que garantiu reais e significativas melhoras foi, em definitivo, eu ter feito as pazes com a minha opção profissional.
    Hoje, que estou mesmo fora da minha profissão (numa licença sem vencimento) e a ponderar o que se segue na minha “tal” carreira (que pode ser e pode não ser um regresso ao meu emprego), sei que fiz bem (quando toda a gente dizia que estava a fazer mal) e espero continuar a fazer bem a parte de tudo tentar para ser simultaneamente um bom pai e um bom trabalhador, mesmo que nunca mais venha a ser considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar".
    No entanto, na verdade, (e ao contrário do que me disseram a partir de 2012) sempre me considerei ambicioso. Tenho a ambição – que não quantifico, porque penso que não haja uma medida numérica que faça justiça a isso – de fazer coisas muito boas, se possível sempre inovadoras, mas sobretudo de alta qualidade; não forçosamente em grande quantidade e definitivamente não em prejuízo da vida pessoal.
    Hoje mesmo, a minha filha, meio adoentada, ficou comigo em casa e fez dois desenhos: um de uma (e cito) «maquineta de fazer bonecos e bonecas» e uma «máquina de fazer taças de comer sopa.»



 [http://paidanoticias.blogspot.pt]

    Estou feliz porque presenciei aquele pequeno-grande momento de divertida genialidade da Benedita. E ainda mais feliz estou por só muito raramente não presenciar o momento em que ela se deita para dormir. A minha verdadeira ambição maior – que também não quantificarei nunca – é ser o melhor pai possível e, se possível, que ela sinta orgulho do profissional que serei enquanto ela crescer. E quando crescer a ponto de já não ser a menina do pai que lhe deu a mão em pequenina, espero não me arrepender daqueles três anos em que lhe dei tão poucos beijos de boa noite.




quarta-feira, março 09, 2016

Sr. Presidente*

Terminado o almoço, levanta-se da mesa, sai da sala, caminha uns passos e puxa do bolso das calças do fato cinza escuro o velho telemóvel que pouco usa. Olha para o visor e, mesmo antes de entrar no gabinete, pára, vira-se para trás e estica o braço, passando o aparelho a quem mais perto está.

-Faça-me um favor... Desliga-me isto? A minha mulher é que sabe mexer nestas coisas... Obrigado...

Volta a colocar o velho telemóvel – já desligado – no bolso e dirige-se finalmente para a secretária, impecavelmente arrumada, onde tem apenas uma base em pele, castanha e reluzente, duas canetas douradas e um pequeno teclado de computador, sem fios. Volta atrás uns passos porque faz questão de ser ele mesmo a fechar ambas as portas do gabinete – anormalmente grande e luxuoso para ser um simples gabinete. Portas que se abrem logo a seguir, ainda antes de se sentar à secretária.

- Posso?...

Faz-se um curto silêncio. Despe o casaco, que coloca nas costas da cadeira. Senta-se, por fim. Aproxima a cadeira da secretária e estica ambos os braços em simultâneo para a frente (naquele movimento que permite que as mangas da camisa se ajustem aos braços, para escrever mais à vontade).

- Pode, pode. Vou precisar de si daqui a pouco. Sente- se ali. Já falamos um bocadinho. Tenho umas ideias para alinhavar.

As portas voltam a fechar-se para mais ninguém entrar no gabinete até ser noite. Puxa de duas folhas “A4′′, lisas, da primeira gaveta à direita na secretária. Dobra-as ao meio, em “A5′′, pega numa das canetas douradas e começa a escrever.

- Não seria melhor escrever já a computador...?

A resposta não surge de imediato. Faz-se novo silêncio. Longo, agora. Ele continua a escrever, ponto por ponto, como quem faz uma lista de tarefas ou de compras.

- Não... Não... Oriento-me melhor assim, sabe. Mas deixe-me alinhavar isto, se faz favor. Já falamos um bocadinho. Está prometido. Vou precisar de si daqui a pouco.»

Passa uma hora... passam duas... três... e os dois ali sentados, em silêncio, cada um no seu lado do gabinete. Só um faz alguma coisa. Escreve. O outro aguarda, de mãos juntas, quase como quem reza; com os dois indicadores esticados, a servir de suporte, tanto ao queixo, como ao lábio inferior ou até à ponta do nariz, alternadamente. Passam mais uma hora nisto. Até que alguém bate à porta.


- Posso?...

- Não. Diga lá.


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A nega causa espanto tanto à funcionária como ao vígil companheiro das últimas quatro horas.

- O telefone está farto de tocar. Querem todos falar consigo...
- Diga-lhes que não vale a pena. Estamos aqui os dois a alinhavar isto.

Levanta-se uma sobrancelha do outro lado do gabinete.

- E até nós dois já somos uma multidão.
- Mas já estão a ligar até para o telemóvel da sua esposa...
- Ah... Com isso não se preocupe... Ela dá conta do recado. Olhe... trazia-nos um chá?... Obrigado.

Volta a pôr os olhos nas folhas dobradas, muito escrevinhadas, onde continua a acrescentar pontos e mais pontos. Ao fim de mais meia hora de silêncio sepulcral, decide falar, ao mesmo tempo que estende o braço para passar as folhas ao fiel adido.

- Ponha-me isto num Word, sim? Tem de ser rapidinho, que já falta pouco e não tarda chega toda a gente. Obrigado pela ajuda que me deu esta tarde.

Ao pegar nas folhas, o adido primeiro levanta uma sobrancelha... depois as duas... e finalmente reúne coragem para perguntar:

- Tem mesmo a certeza que é isto que quer dizer?!...

E, no fim de perguntar, percebe de imediato que vai ouvir aquela resposta já dezenas de vezes ouvida, sempre em alturas chave.

- Eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas. Lembra-se?

Lá está ela, a resposta. Resta-lhe “passar a limpo” o que tem naquelas duas folhas e oito páginas de rascunho.. Sai do gabinete para só lá voltar quinze minutos depois.

Quando regressa, com quatro folhas “A4′′ na mão, já o chefe não está no gabinete, mas sim numa pequena sala ao lado, a ser maquilhado por uma jovem muito jovem (e bonita!) que vai balbuciando algo sobre ser «uma emoção estar a pôr-lhe um pozinho!». Ele estica a mão por debaixo de um tecido (que acaba de aprender que se chama penteador), pega o novo enunciado e passa-lhe uma vista de olhos.

- Sim, é mesmo isto que eu quero dizer. Obrigado pelo pozinho, menina.

E volta para o gabinete, unicamente para se imobilizar junto às portas principais, que se abrem exactamente trinta segundos depois de se ter lá colocado, a ouvir o burburinho de gente a falar e de toques de telemóvel e de cliques e de flashes, que subitamente aumentam (todos!) de volume, num frenesi de som e luz que só amaina quando já está frente a cerca de umas trinta pessoas e de um pequeno palanque.

E, chegado ali, fala...


[Ilustração: Lucy Pepper]



Minutos depois, despede-se e sai, de novo para o gabinete, apenas para pousar as quatro folhas “A4′′ na secretária, maculando por momentos a impecável arrumação do móvel.

- Arquiva-me isto no sítio habitual, por favor? Mas antes tire umas fotocópias, que vamos precisar delas pela manhã. Obrigado. Vou-me deitar.

E vai.
Ao entrar no quarto, senta-se na cama, a olhar para a janela.

- Sabes que vais ter problemas, não sabes?... Acreditas que me ligaram todos?... Nunca me tinha acontecido! Não assim, pelo menos... Eles não sabiam de nada, mesmo?... Nenhum deles?!... O teu telefone está avariado?...
- Não. Importas-te que me deite só assim um bocadinho, ainda vestido? Já visto o pijama. Só quero descansar os olhos.. Desligas a luz por uns minutos, por favor?... Obrigado. Desliga o teu telefone também. Eles vão querer ligar toda a noite. Já dei ordem para ninguém anotar mensagens sequer. Amanhã trato deles... perdão... trato disso.

Ela desliga a luz. Ele fica sozinho no quarto, no escuro.

- Raramente tenho dúvidas... - respira fundo - ... nunca me engano...


Adormece.
Até de manhã.

Será o seu 2681º dia em funções.





* Publicado originalmente na revista online "Papel", em 2013.  Republicado posteriormente, em 2015, no livro "Sem princípio, meio, ou fim."

segunda-feira, novembro 23, 2015

"Sem princípio, meio, ou fim." - A análise (definitiva!)



NOTA: Augusto Nogueira, actual director da Escola Secundária com 3º Ciclo Dom Dinis, de Coimbra, foi meu professor de Português na Escola Secundária de Soure, nos anos '90. Como docente e ser humano é extremamente carismático, de tal forma que, volvidos muitos anos, é o único professor daquela fase da minha vida com quem ainda mantenho contacto. Por isso - por me conhecer ainda adolescente e ter acompanhado aquilo que fui tornando até hoje -, pelo facto de ser um amante da Literatura e por, juntando essas razões, ser a pessoa mais avalizada para o fazer, arrisquei tudo - correndo o risco de ser tecnicamente dizimado por "quem de direito" - e pedi ao s'tôr Augusto que lesse o meu livro "Sem princípio, meio, ou fim." e no final partilhasse a sua análise da obra - escrevi-o, de resto, na mensagem que lhe dediquei quando assinei o exemplar que seguiu para Coimbra. Temi o que fiz, confesso. Senti até ligeiro arrependimento dessa ousadia. Hoje, sinto-me esmagado - da forma mais positiva possível! - pela resposta, pela análise, pela surpresa de ler o que li na volta do... e-mail. Com um imenso agradecimento ao Professor Augusto Nogueira - que já lhe fiz chegar - e com uma única nota para o facto de, tal como o Professor, também eu preferir o termo "estórias" em vez de "histórias" (só não o utilizo porque normalmente não é bem entendido pela maioria dos leitores), aqui fica - sem mais palavras minhas - a transcrição da análise de Augusto Nogueira à obra "Sem princípio, meio, ou fim."


* * *


        Começando pela dedicatória, permite-me que te diga que a mesma e o tal desafio “público” me honram bastante. Depois, dizer-te também que a obra ultrapassa tudo o que te ensinei.

        Se pensarmos que a missão de um professor de Português é potenciar as capacidades criativas, linguísticas e interpretativas, entre outras, de um aluno, só posso concluir que a minha missão foi cumprida. Há, porém, felizmente, alunos que conseguem ultrapassar e superar tudo o que lhe é ensinado. Ao longo da vida acrescentam muito mais ao que aprenderam na escola através do seu labor, da sua criatividade, do seu talento, do seu génio. Aqui, o discípulo ultrapassa o mestre. Regozijo-me com o facto!

        O título “Sem princípio, meio, ou …” é também uma expressão que se costuma usar para designarmos algo sem sentido. Direi que a maior parte das histórias dos “pequenos contos” têm uma espécie de “non sense”. Efetivamente, algumas histórias são desconcertantes, com desenvolvimento imprevisto e surpreendente. Surge-nos, pois, uma primeira característica dos “pequenos contos”, mas onde o surpreendente não deixa de ser ousado e criativo. 

        Curiosamente, vejo o autor, sentado na segunda fila de cadeiras da esquerda, na última, se não estou em erro, e que por vezes fazia comentários também eles desconcertantes, mas movidos pela pertinência e ousadia. Ou dirigindo-se no fim da aula à minha secretária com comentários “provocadores” e “desafiantes”. Já nesses momentos se manifestava o génio criativo que agora está patente nos contos.

        Retomando, a maior parte dos contos, desconcertantes como já afirmei, acabam por ter muito sentido, pois o princípio, o meio e o fim ficam ao critério do leitor (como somos alertados ou informados na introdução). O que será da literatura quando o leitor não construir com o narrador a obra? Portanto, são contos de construção conjunta e a este nível também são desafiantes. Não é por este motivo que uma narrativa escrita é de longe superior a uma qualquer encenação teatral ou fílmica? A resposta é essa: no livro, o leitor constrói também. 

        Quanto ao desafio plástico, fico a perder e não consigo acompanhar, muito menos completar. Nunca tive jeito para desenho…

        “Sem princípio, meio, ou…” remete-nos, como dizes e muito bem, para “histórias” onde não há um antes ou um depois, um fim. Há o momento, o instante. Por isso, para mim, os teus contos são instantes, “flashes” narrativos da vida de personagens ficionadas e/ou reais. Daí que, numa primeira comunicação minha, até utilizei o termo “estória”, termo que os brasileiros usam para distinguir a “história” e “estória”. Sempre concordei com eles nesta matéria, pois factos grandiosos, de história de um povo, da vida de uma família ou de uma pessoa não é o mesmo que “estórias” curtas e momentâneas. Vou retirar o termo “estória” porque me parece não ser do teu agrado e fiquemo-nos com histórias. 

        Neste âmbito, não posso deixar de te parabenizar novamente porque é notório que temos um narrador/autor que foi capaz de fixar do mundo real pessoas com quem tenha se tenha cruzado, convivido ou histórias que tenha ouvido. Captar o mundo real, filtrá-lo e ficcioná-lo não está ao alcance de todos.

        Outro dado cativante dos teus contos diz respeito às personagens das histórias. Em histórias tão curtas não há tempo para as personagens serem trabalhadas ou se manifestarem em riqueza ou densidade psicológica, pelo que ficamos com uma pincelada muito vaga. Nesta linha, vemos desfilar personagens vulgares, populares, de baixa condição social, aproximando-se de personagens pícaras. Isto é, não o herói, dotado de caraterísticas ímpares, mas o vulgar que, se for preciso, recorre a meios de baixa moral. No meio desta “passerelle”, confrontarmo-nos com personagens e histórias interessantíssimas e a sua identificação é uma manifestação de preferência minha: a “Maria Severa de Linda-a-Velha, “ O Relojoeiro”, “António Frasco”, O Sr. Presidente”, “Filomena Aviadora”, e “A César o que não é de César”. Diria que em algumas delas a personagem se aproxima da poesia da vida…

        Por último, quero referir a dinâmica narrativa. Os contos lêem-se num ápice. Como são curtos e entusiasmantes, queremos conhecer a personagem que se segue, ver o próximo a desfilar. Quero dizer, que há dinâmica, há vida nas personagens e na narração. 

        Como corolário, qual cereja no topo do bolo, a ironia subjacente a todas as histórias e personagens. Mas não vejo uma ironia desdenhante ou altiva, pelo contrário, vejo uma ironia carinhosa e manifestadora de apreço pelas personagens.

        É o que tenho a dizer-te, Marco, sobre o teu “Sem princípio, meio, ou…” 


        Um grande abraço e muitos êxitos.

        Adémia-Coimbra, 22 de novembro de 2015


                           Augusto Nogueira