quarta-feira, fevereiro 04, 2015

«Nós temos tempo.»


Não é fácil acontecer ser surpreendido por algo que me digam. Consequência do tempo que passa pela vida. Mas hoje fui. Com três palavras.

«Nós temos tempo.»

Na verdade, nenhumas outras três palavras conseguiriam surpreender-me hoje, senão estas. «Nós temos tempo.» Precisamente hoje, que mal tive tempo para dormir, para acordar, para tomar o pequeno-almoço, para estar às sete da manhã no trabalho, para só de lá sair às quatro da tarde, sem pelo meio ter tempo de fazer outra coisa que não aquilo que me pagam para fazer até às duas, sem ter tempo para almoçar, sem ter tempo para uma ida à casa-de-banho sequer. E quando saí do trabalho, supostamente com tempo no resto do dia para fazer o que tivesse de ser feito, saí sem tempo a perder, porque na oficina já esperavam pelo carro. «Nós temos tempo.», foi algo que nunca pensei ouvir hoje, muito menos compreender, ou sequer ter espaço na mente (ou tempo, lá está) para processar essas três surpreendentes palavras. Mas ouvi-as, sim. No supermercado, para onde me precipitei logo a seguir ao arranjo do carro, sem tempo a desperdiçar porque já se fazia tarde para ir buscar a pequena à escola. Carregado que tinha o cesto (apressadamente cheio em menos de 5 minutos de passagem pelos vários corredores da loja), já junto à caixa, percebi que o casal que me seguia na fila tinha apenas três artigos para pagar. Olhei para eles, ofereci-lhes passagem, porque caso contrário esperariam muito mais eles por mim do que aquilo que esperaria eu por eles. Consequência da educação que os meus pais me deram.

«Obrigado! Não se preocupe!», respondeu-me o senhor, com um sorriso largo e descontraído. «Nós temos tempo.»

Tenho ideia de ter ficado - como se diz… - embasbacado, ali, durante uns segundos. Porque me parece - porque me pareceu, naquele momento, pelo menos - que já ninguém diz que tem tempo. E continuo ainda com essa dúvida, se alguém, hoje em dia, dirá que tem tempo, com a franqueza com que aquele homem me disse. Verdade seja dita, se fiquei embasbacado, foi só mesmo por uns segundos porque eu não tinha tempo. Tinha de pagar e sair, meter-me no carro e rumar à escola da pequena. E assim foi. Pelo caminho, dei comigo a “ouvir” a frase mentalmente. «Nós temos tempo.» Que coisa extraordinária!

Entrei na escola, com a certeza de que pegaria a pequena, assinaria o termo de responsabilidade e com ela regressaríamos a casa rapidamente, porque havia jantar para fazer, banho para dar e tudo fazer para deitar cedo, sem grande tempo para brincadeiras, que amanhã o dia começa de madrugada e será longo, certamente.

Subi as escadas, peguei logo o casaco e a mochila dela, bati à porta da sala e abri. Ela olhou e levantou-se de imediato, pronta para sair. Mas tinha um livro na mão. Estava a ler uma história a todos os colegas, que a estavam a ouvir em silêncio. «Nós temos tempo.», pensei, naquele exacto instante. Disse-lhe para não se levantar, para voltar a pegar no livro e para lê-lo até ao fim. Com a autorização da educadora, puxei uma das minúsculas cadeiras da sala e lá fiquei, a ouvir também. Não tinha tempo. Forcei-me a tê-lo. «Nós temos tempo.» Eu e ela também tínhamos de ter tempo, acima de tudo para partilhar pela primeira vez um momento de que ela já me tinha falado mas que, em cinco anos de infantário, eu nunca tinha presenciado.




Ela leu tudo até ao fim. Eu esperei. O tempo que foi necessário. Quando ela terminou a leitura (largos minutos depois), então sim, saímos. Atrasou-se o jantar e o banho, pois sim. Mas ganhou-se tempo. Daquele que não vem nos relógios. Daquele que colocou o sorriso e a descontração na expressão do senhor que me surpreendeu ao dizer «Nós temos tempo.» Só mais tarde percebi mesmo o que ele me quis dizer com aquelas três palavras.

Esperei por chegar à cama para escrever isto. Não que tenha muito tempo para o fazer - já devia estar a dormir, porque o despertador toca às 5:30 da madrugada - mas mesmo sacrificando tempo de sono queria ter um pouco de tempo para deixar este episódio por escrito. Atrasa-se o adormecer, por sim. Mas ganha-se tempo. Daquele que não vem nos relógios. Daquele que me faz sentir que vale a pena perder tempo para ganhar tempo a fazer alguma coisa que valha a pena. 

Por exemplo, capacitar-me que devo dizer mais vezes estas três palavras: «Eu tenho tempo.»