quinta-feira, setembro 15, 2016

Eu, blogger.

    Por vezes, uma chamada de atenção é só mesmo isso, uma chamada de atenção. Outras vezes, algo que não é uma chamada de atenção torna-se nisso mesmo, numa chamada de atenção.

    Podia ter colocado esta questão de forma mais eloquente, acredito, mas a verdade é que - talvez por estar "perro" e destreinado - a escrita hoje não flui como noutros dias, tal como não flui agora como noutras alturas. Acontece, acho. Um dia destes melhora, creio.

    Na verdade, o que queria dizer ali em cima era que hoje fui fazer reportagem acerca do concurso Blogs do Ano, da Media Capital, e que esse trabalho - que era só um trabalho e não uma chamada de atenção - me alertou para o facto de que me tenho esquecido de lembrar de ser o que sou* há muitos anos (desde 2004 - 15/11/2004): um blogger. E que gosto de o ser.



    Na verdade, os bloggers que entrevistei para a reportagem da TVI - leia-se, personalidades dos media, da publicidade, do espetáculo e várias outras áreas, convidados a escolher os blogs finalistas do concurso -, tal como eu, já não dedilham nos seus blogs há uns tempos. Digamos, ... anos. E isso - de forma puramente egoísta - faz-me sentir um pouco menos mal com o facto de não andar por "cá" desde março passado. desde março passado.

    Mas o facto é que já não "blogo" desde março e não gosto de não "blogar".
    Mesmo que seja desde março.

    Já experimentei uma data de coisas numa data de blogs. Gostei de uma data delas e detestei uma data deles. Mas adorei experimentar tudo, com data no topo dos posts, com data no fundo dos posts e mesmo em posts sem data sequer.

   Hoje, então, dei comigo a recordar-me, acima de tudo, do inSenso Comum e do Petit Riens, por onde comecei. E acabei a lembrar-me do Pai, dá notícias!...  e, claro,  deste Nunca hei de ter um Blog, por onde ainda ando (para além do blog "interno" do site marcoantonio.pt - onde "blogo" sobre assuntos que se relacionem com a minha vida profissional).

    Tenho saudades do inSenso e do Petit Riens, mas foram blogs de que EU precisava naquele momento. E esse momento passou. Orgulho-me desses blogs mas não tenciono voltar a eles.

    Agora, talvez precise de voltar aos meus mais recentes blogs, porque sentir-me "perro" e destreinado não é para mim, nunca foi. 

    Mas, acima de tudo, acho que devo voltar por um motivo muito simples.
    Eu sou blogger. 





* [isto é a escrita a fluir de modo a parecer que não flui - propositadamente -; o que significa que talvez já vá fluindo um pouco melhor]

quarta-feira, março 23, 2016

A minha (inquantificável) verdadeira ambição: ser o melhor pai possível

    As empresas, nas avaliações periódicas de desempenho dos seus funcionários, têm sempre uma alínea em que atribuem um valor (sim, quantitativo - de 1 a 5, de 1 a 10, ou entre 'x' e 'y' - os algarismos podem variar) àquilo que denominam a "ambição" do trabalhador.
    Na verdade, o que quase sempre consideram "ambição" é a disponibilidade do funcionário para fazer mais horas que aquelas que o contrato estipula. Isso, alegadamente, (e sei-o porque já mo foi dito muitas vezes) mostra quanto o trabalhador ambiciona "subir na carreira".
    Confesso que embarquei nessa ideia de que seria melhor naquilo que faço/fazia se o fizesse em GRANDE quantidade. Talvez tenha aparentado que fiz o meu melhor quando trabalhei que nem um louco - sempre pelo mesmo salário e nunca, já agora, sem qualquer "subida na carreira" ou promoção efectiva. Mas fui considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar".
    Este desempenho alegadamente "ambicioso" da minha parte coincidiu com o nascimento de um canal de televisão da minha empresa e, esse nascimento coincidiu com o nascimento (meses depois) da minha filha, que praticamente não vi deitar durante os três primeiros anos da vida, porque chegava sempre a casa para lá das 22:00 (muitas vezes, mais tarde – muitas vezes até já de madrugada; muitas vezes depois de ter entrado ao serviço às primeiras horas da manhã).
    Percebendo que algo estava errado na minha alegada "ambição", pedi para mudar de horários e chegou a ser-me dito, por um dos mais altos responsáveis do meu departamento na empresa, que, se era por causa da minha filha, ela cresceria bem mesmo que eu não estivesse lá para a deitar todas as noites (ipsis verbis). Se tinha a intenção de mudar de vida, a partir dali tive a certeza. E mudei. Deixei, naturalmente, de ser considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar" e, muito menos, “ambicioso”.
    As empresas – falo assim, no abstracto, porque há pessoas dentro das empresas que não pensam necessariamente pela bitola das instituições para as quais trabalham – consideram sistematicamente que, por exemplo, fazer muitos turnos nocturnos ou estar disponível para alternar de turnos sempre que convém à empresa é sinal de “ambição”, quando, na verdade, é apenas sinal de que as pessoas estão em péssima posição (financeira, sobretudo) para dizer que não – ou seja, correndo o risco de se tornarem “dispensáveis” à primeira “restruturação” (que quase sempre significa despedimento de funcionários). Mais, as empresas confundem horas e horários de trabalho com produtividade. Quanto ao primeiro caso, tenho a dizer que em todos os sítios onde trabalhei sempre conheci pessoas que lá estavam as mesmas horas que eu (e até mais horas do que eu - quando fiz part-time) e produziam menos. No segundo caso, as empresas nem percebem que há funcionários que simplesmente não têm o mesmo rendimento em todos os turnos... só porque são humanos (o ser humano, por regra, não tem a mesma acuidade mental 24 horas por dia), e que ao insistir colocar determinado funcionário num horário em que não se sente bem, e em que, por consequência, não produz tanto ou tão bem, se estão a prejudicar a si mesmas. Sim, as empresas prejudicam-se mais a si ao insistir neste erro. Mas insistem. Por vezes, sistematicamente, até que o funcionário mete "baixa", se demite ou é demitido (porque se tornou "dispensável").
    Mas, pronto. Eu decidi como decidi e, fiquei algo surpreendido quando boa parte das pessoas que estranharam (e até criticaram) a minha opção na altura, curiosamente, mudou de atitude na sua própria vida profissional com o nascimento dos seus filhos. Acho isso extremamente positivo – tirando a parte em que podiam, antes disso, ter guardado as pedras nos bolsos sem as atirar, porque telhados de vidro, um dia, todos temos. Não consegui “subir na carreira” – que estagnou – mas sou hoje um pai extremamente mais feliz por ter garantido maior controlo do ‘ratio’ trabalhador-pai.



    Ouvi o treinador Quinito – a sofrer de uma profunda depressão após a morte em 2009 do filho de 30 anos, que diz não ter conhecido por trabalhar demasiado toda a vida – e confesso que suspirei de alívio. Por uma só razão. Por não ter aquela amargura na minha voz. Se sofri de depressão já depois de ter pedido e feito mudança nos meus horários? Sim. Porque percebi, como já disse, que a carreira estagnou e não conseguia entender por que razão teria de ser alegadamente "melhor profissional" apenas estando disponível para fazer vários turnos diferentes na empresa. Melhorei dessa condição com terapia, mas o que garantiu reais e significativas melhoras foi, em definitivo, eu ter feito as pazes com a minha opção profissional.
    Hoje, que estou mesmo fora da minha profissão (numa licença sem vencimento) e a ponderar o que se segue na minha “tal” carreira (que pode ser e pode não ser um regresso ao meu emprego), sei que fiz bem (quando toda a gente dizia que estava a fazer mal) e espero continuar a fazer bem a parte de tudo tentar para ser simultaneamente um bom pai e um bom trabalhador, mesmo que nunca mais venha a ser considerado "fantástico", "enorme!", "exemplar".
    No entanto, na verdade, (e ao contrário do que me disseram a partir de 2012) sempre me considerei ambicioso. Tenho a ambição – que não quantifico, porque penso que não haja uma medida numérica que faça justiça a isso – de fazer coisas muito boas, se possível sempre inovadoras, mas sobretudo de alta qualidade; não forçosamente em grande quantidade e definitivamente não em prejuízo da vida pessoal.
    Hoje mesmo, a minha filha, meio adoentada, ficou comigo em casa e fez dois desenhos: um de uma (e cito) «maquineta de fazer bonecos e bonecas» e uma «máquina de fazer taças de comer sopa.»



 [http://paidanoticias.blogspot.pt]

    Estou feliz porque presenciei aquele pequeno-grande momento de divertida genialidade da Benedita. E ainda mais feliz estou por só muito raramente não presenciar o momento em que ela se deita para dormir. A minha verdadeira ambição maior – que também não quantificarei nunca – é ser o melhor pai possível e, se possível, que ela sinta orgulho do profissional que serei enquanto ela crescer. E quando crescer a ponto de já não ser a menina do pai que lhe deu a mão em pequenina, espero não me arrepender daqueles três anos em que lhe dei tão poucos beijos de boa noite.




quarta-feira, março 09, 2016

Sr. Presidente*

Terminado o almoço, levanta-se da mesa, sai da sala, caminha uns passos e puxa do bolso das calças do fato cinza escuro o velho telemóvel que pouco usa. Olha para o visor e, mesmo antes de entrar no gabinete, pára, vira-se para trás e estica o braço, passando o aparelho a quem mais perto está.

-Faça-me um favor... Desliga-me isto? A minha mulher é que sabe mexer nestas coisas... Obrigado...

Volta a colocar o velho telemóvel – já desligado – no bolso e dirige-se finalmente para a secretária, impecavelmente arrumada, onde tem apenas uma base em pele, castanha e reluzente, duas canetas douradas e um pequeno teclado de computador, sem fios. Volta atrás uns passos porque faz questão de ser ele mesmo a fechar ambas as portas do gabinete – anormalmente grande e luxuoso para ser um simples gabinete. Portas que se abrem logo a seguir, ainda antes de se sentar à secretária.

- Posso?...

Faz-se um curto silêncio. Despe o casaco, que coloca nas costas da cadeira. Senta-se, por fim. Aproxima a cadeira da secretária e estica ambos os braços em simultâneo para a frente (naquele movimento que permite que as mangas da camisa se ajustem aos braços, para escrever mais à vontade).

- Pode, pode. Vou precisar de si daqui a pouco. Sente- se ali. Já falamos um bocadinho. Tenho umas ideias para alinhavar.

As portas voltam a fechar-se para mais ninguém entrar no gabinete até ser noite. Puxa de duas folhas “A4′′, lisas, da primeira gaveta à direita na secretária. Dobra-as ao meio, em “A5′′, pega numa das canetas douradas e começa a escrever.

- Não seria melhor escrever já a computador...?

A resposta não surge de imediato. Faz-se novo silêncio. Longo, agora. Ele continua a escrever, ponto por ponto, como quem faz uma lista de tarefas ou de compras.

- Não... Não... Oriento-me melhor assim, sabe. Mas deixe-me alinhavar isto, se faz favor. Já falamos um bocadinho. Está prometido. Vou precisar de si daqui a pouco.»

Passa uma hora... passam duas... três... e os dois ali sentados, em silêncio, cada um no seu lado do gabinete. Só um faz alguma coisa. Escreve. O outro aguarda, de mãos juntas, quase como quem reza; com os dois indicadores esticados, a servir de suporte, tanto ao queixo, como ao lábio inferior ou até à ponta do nariz, alternadamente. Passam mais uma hora nisto. Até que alguém bate à porta.


- Posso?...

- Não. Diga lá.


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A nega causa espanto tanto à funcionária como ao vígil companheiro das últimas quatro horas.

- O telefone está farto de tocar. Querem todos falar consigo...
- Diga-lhes que não vale a pena. Estamos aqui os dois a alinhavar isto.

Levanta-se uma sobrancelha do outro lado do gabinete.

- E até nós dois já somos uma multidão.
- Mas já estão a ligar até para o telemóvel da sua esposa...
- Ah... Com isso não se preocupe... Ela dá conta do recado. Olhe... trazia-nos um chá?... Obrigado.

Volta a pôr os olhos nas folhas dobradas, muito escrevinhadas, onde continua a acrescentar pontos e mais pontos. Ao fim de mais meia hora de silêncio sepulcral, decide falar, ao mesmo tempo que estende o braço para passar as folhas ao fiel adido.

- Ponha-me isto num Word, sim? Tem de ser rapidinho, que já falta pouco e não tarda chega toda a gente. Obrigado pela ajuda que me deu esta tarde.

Ao pegar nas folhas, o adido primeiro levanta uma sobrancelha... depois as duas... e finalmente reúne coragem para perguntar:

- Tem mesmo a certeza que é isto que quer dizer?!...

E, no fim de perguntar, percebe de imediato que vai ouvir aquela resposta já dezenas de vezes ouvida, sempre em alturas chave.

- Eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas. Lembra-se?

Lá está ela, a resposta. Resta-lhe “passar a limpo” o que tem naquelas duas folhas e oito páginas de rascunho.. Sai do gabinete para só lá voltar quinze minutos depois.

Quando regressa, com quatro folhas “A4′′ na mão, já o chefe não está no gabinete, mas sim numa pequena sala ao lado, a ser maquilhado por uma jovem muito jovem (e bonita!) que vai balbuciando algo sobre ser «uma emoção estar a pôr-lhe um pozinho!». Ele estica a mão por debaixo de um tecido (que acaba de aprender que se chama penteador), pega o novo enunciado e passa-lhe uma vista de olhos.

- Sim, é mesmo isto que eu quero dizer. Obrigado pelo pozinho, menina.

E volta para o gabinete, unicamente para se imobilizar junto às portas principais, que se abrem exactamente trinta segundos depois de se ter lá colocado, a ouvir o burburinho de gente a falar e de toques de telemóvel e de cliques e de flashes, que subitamente aumentam (todos!) de volume, num frenesi de som e luz que só amaina quando já está frente a cerca de umas trinta pessoas e de um pequeno palanque.

E, chegado ali, fala...


[Ilustração: Lucy Pepper]



Minutos depois, despede-se e sai, de novo para o gabinete, apenas para pousar as quatro folhas “A4′′ na secretária, maculando por momentos a impecável arrumação do móvel.

- Arquiva-me isto no sítio habitual, por favor? Mas antes tire umas fotocópias, que vamos precisar delas pela manhã. Obrigado. Vou-me deitar.

E vai.
Ao entrar no quarto, senta-se na cama, a olhar para a janela.

- Sabes que vais ter problemas, não sabes?... Acreditas que me ligaram todos?... Nunca me tinha acontecido! Não assim, pelo menos... Eles não sabiam de nada, mesmo?... Nenhum deles?!... O teu telefone está avariado?...
- Não. Importas-te que me deite só assim um bocadinho, ainda vestido? Já visto o pijama. Só quero descansar os olhos.. Desligas a luz por uns minutos, por favor?... Obrigado. Desliga o teu telefone também. Eles vão querer ligar toda a noite. Já dei ordem para ninguém anotar mensagens sequer. Amanhã trato deles... perdão... trato disso.

Ela desliga a luz. Ele fica sozinho no quarto, no escuro.

- Raramente tenho dúvidas... - respira fundo - ... nunca me engano...


Adormece.
Até de manhã.

Será o seu 2681º dia em funções.





* Publicado originalmente na revista online "Papel", em 2013.  Republicado posteriormente, em 2015, no livro "Sem princípio, meio, ou fim."