Terminado o almoço, levanta-se da mesa, sai da
sala, caminha uns passos e puxa do bolso das
calças do fato cinza escuro o velho telemóvel
que pouco usa. Olha para o visor e, mesmo antes de entrar no gabinete, pára, vira-se para trás e estica o
braço, passando o aparelho a quem mais perto está.
-Faça-me um favor... Desliga-me isto? A minha mulher
é que sabe mexer nestas coisas... Obrigado...
Volta a colocar o velho telemóvel – já desligado
– no bolso e dirige-se finalmente para a secretária,
impecavelmente arrumada, onde tem apenas uma base
em pele, castanha e reluzente, duas canetas douradas e
um pequeno teclado de computador, sem fios. Volta atrás uns passos porque faz questão de ser
ele mesmo a fechar ambas as portas do gabinete –
anormalmente grande e luxuoso para ser um simples
gabinete. Portas que se abrem logo a seguir, ainda antes
de se sentar à secretária.
- Posso?...
Faz-se um curto silêncio. Despe o casaco, que coloca
nas costas da cadeira. Senta-se, por fim. Aproxima
a cadeira da secretária e estica ambos os braços em
simultâneo para a frente (naquele movimento que
permite que as mangas da camisa se ajustem aos braços,
para escrever mais à vontade).
- Pode, pode. Vou precisar de si daqui a pouco. Sente-
se ali. Já falamos um bocadinho. Tenho umas ideias para
alinhavar.
As portas voltam a fechar-se para mais ninguém
entrar no gabinete até ser noite. Puxa de duas folhas “A4′′, lisas, da primeira gaveta
à direita na secretária. Dobra-as ao meio, em “A5′′, pega
numa das canetas douradas e começa a escrever.
- Não seria melhor escrever já a computador...?
A resposta não surge de imediato. Faz-se novo
silêncio. Longo, agora. Ele continua a escrever, ponto por
ponto, como quem faz uma lista de tarefas ou de compras.
- Não... Não... Oriento-me melhor assim, sabe. Mas
deixe-me alinhavar isto, se faz favor. Já falamos um
bocadinho. Está prometido. Vou precisar de si daqui a
pouco.»
Passa uma hora... passam duas... três... e os dois ali
sentados, em silêncio, cada um no seu lado do gabinete. Só
um faz alguma coisa. Escreve. O outro aguarda, de mãos
juntas, quase como quem reza; com os dois indicadores
esticados, a servir de suporte, tanto ao queixo, como ao
lábio inferior ou até à ponta do nariz, alternadamente. Passam mais uma hora nisto. Até que alguém bate à porta.
- Posso?...
- Não. Diga lá.
A nega causa espanto tanto à funcionária como ao
vígil companheiro das últimas quatro horas.
- O telefone está farto de tocar. Querem todos falar
consigo...
- Diga-lhes que não vale a pena. Estamos aqui os dois
a alinhavar isto.
Levanta-se uma sobrancelha do outro lado do
gabinete.
- E até nós dois já somos uma multidão.
- Mas já estão a ligar até para o telemóvel da sua
esposa...
- Ah... Com isso não se preocupe... Ela dá conta do
recado. Olhe... trazia-nos um chá?... Obrigado.
Volta a pôr os olhos nas folhas dobradas, muito
escrevinhadas, onde continua a acrescentar pontos
e mais pontos. Ao fim de mais meia hora de silêncio
sepulcral, decide falar, ao mesmo tempo que estende o
braço para passar as folhas ao fiel adido.
- Ponha-me isto num Word, sim? Tem de ser
rapidinho, que já falta pouco e não tarda chega toda a
gente. Obrigado pela ajuda que me deu esta tarde.
Ao pegar nas folhas, o adido primeiro levanta uma
sobrancelha... depois as duas... e finalmente reúne
coragem para perguntar:
- Tem mesmo a certeza que é isto que quer dizer?!...
E, no fim de perguntar, percebe de imediato que vai
ouvir aquela resposta já dezenas de vezes ouvida, sempre
em alturas chave.
- Eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas. Lembra-se?
Lá está ela, a resposta. Resta-lhe “passar a limpo” o que tem naquelas duas folhas e oito páginas de rascunho..
Sai do gabinete para só lá voltar quinze minutos depois.
Quando regressa, com quatro folhas “A4′′ na mão, já o
chefe não está no gabinete, mas sim numa pequena sala
ao lado, a ser maquilhado por uma jovem muito jovem
(e bonita!) que vai balbuciando algo sobre ser «uma
emoção estar a pôr-lhe um pozinho!». Ele estica a mão
por debaixo de um tecido (que acaba de aprender que
se chama penteador), pega o novo enunciado e passa-lhe
uma vista de olhos.
- Sim, é mesmo isto que eu quero dizer. Obrigado pelo
pozinho, menina.
E volta para o gabinete, unicamente para se imobilizar
junto às portas principais, que se abrem exactamente
trinta segundos depois de se ter lá colocado, a ouvir o
burburinho de gente a falar e de toques de telemóvel e de
cliques e de flashes, que subitamente aumentam (todos!)
de volume, num frenesi de som e luz que só amaina
quando já está frente a cerca de umas trinta pessoas e de
um pequeno palanque.
Minutos depois, despede-se e sai, de novo para o
gabinete, apenas para pousar as quatro folhas “A4′′
na secretária, maculando por momentos a impecável
arrumação do móvel.
- Arquiva-me isto no sítio habitual, por favor? Mas
antes tire umas fotocópias, que vamos precisar delas pela
manhã. Obrigado. Vou-me deitar.
E vai.
Ao entrar no quarto, senta-se na cama, a olhar para
a janela.
- Sabes que vais ter problemas, não sabes?... Acreditas
que me ligaram todos?... Nunca me tinha acontecido! Não
assim, pelo menos... Eles não sabiam de nada, mesmo?...
Nenhum deles?!... O teu telefone está avariado?...
- Não. Importas-te que me deite só assim um
bocadinho, ainda vestido? Já visto o pijama. Só quero
descansar os olhos.. Desligas a luz por uns minutos, por
favor?... Obrigado. Desliga o teu telefone também. Eles
vão querer ligar toda a noite. Já dei ordem para ninguém
anotar mensagens sequer. Amanhã trato deles... perdão...
trato disso.
Ela desliga a luz. Ele fica sozinho no quarto, no escuro.
- Raramente tenho dúvidas... - respira fundo - ... nunca
me engano...
Adormece.
Até de manhã.
Será o seu 2681º dia em funções.
* Publicado originalmente na revista online "Papel", em 2013. Republicado posteriormente, em 2015, no livro "Sem princípio, meio, ou fim."
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